Katipunan: Maçonaria e a Revolução
Conteúdo originalmente publicado no livro: KATIPUNAN: MAÇONARIA E A REVOLUÇÃO escrito pelo Professor Tales de Azevedo em 2011. Este conteúdo é protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido sem autorização. Ao utilizar trechos deste material, favor referenciar a origem adequadamente.
Introdução
O presente trabalho surgiu no início do ano como uma simples peça de 6 páginas, que visava saciar minha curiosidade em um assunto levemente abordado no livro Filipinas: História e Artes Marcais.
Essa primeira versão, hoje disponível em diversos blogs na internet, ao invés de satisfazer serviu para despertar o desejo de conhecer mais sobre essa augusta ordem, que nasceu visando um único fim: a liberdade.
Não espero esgotar os mistérios do Katipunan nessas páginas. Meu intento é o de somente ampliar os horizontes daqueles interessados e indicar um norte para a obtenção de novos e maiores conhecimentos sobre o assunto.
Dedico esse trabalho a minha família, por todo apoio, aos meus amigos Rogério Rangel e Maxwell Martins, pela ajuda durante elaboração, a Leonardo Jaques pela fabulosa capa e aos irmãos de pedra.
Capítulo 1:
Há diversas definições sobre o que é a Maçonaria. Basta abrir livros sobre o assunto, revistas especializadas em história ou uma breve busca na internet. Como precisamos de uma para começar o nosso estudo, vamos então tomar emprestada uma definição breve e bem sucinta, que pode ser encontrada no site da Confederação Maçônica do Brasil – COMAB:
A Maçonaria é uma instituição essencialmente filosófica, filantrópica, educativa e progressista.
Muito já foi dito sobre as origens da Maçonaria. Livros, centenas de documentários exibidos em canais por assinatura,reportagens, etc. Por mais detalhistas e minuciosos que sejam esses trabalhos, todos acabam por parar em determinado ponto sem responder a pergunta original ao qual se propuseram.
Diferente de outras instituições, a Maçonaria não possui um criador nem uma data de fundação. Mesmo aqueles que digam e utilizem a data de fundação da Grande Loja Unida da Inglaterra, falham ao mencionarem os movimentos e grupos que já existiam antes dessas.
Assim, só nos resta recorrer a um celebre autor, Rizzardo da Camino [1], que diz:
A Maçonaria não surgiu com este nome, mas foi um movimento que reuniu em torno de si, pouco a pouco, os ideais maçônicos como os compreendemos hoje. Assim, não podemos afirmar que a Maçonaria tem as suas origens nas brumas do passado, neste ou naquele local. Mas, apenas podemos referir que a atual Maçonaria originou-se de um movimento de reação, envolvendo interesses sociais, políticos, econômicos e religiosos.
O Professor Alexandre Mansur Barata, destacou em um artigo de sua autoria [2] que:
As lojas maçônicas, com seus nomes sugestivos (…) funcionavam como importantes espaços de sociabilidade e convívio, influindo no cotidiano tanto das cidades pequenas quanto nas maiores. Nelas os grandes temas que mobilizavam a sociedade brasileira do período eram discutidos e novas práticas culturais eram aprendidas.
As influências e os trabalhos empreendidos pelo maçom na sociedade variavam de acordo a sua época: construção de escolas, criação de espaços culturais, influências nas leis, etc. Impossível não citar homens como José Bonifácio e Gonçalves Ledo, cujas disputas dentro e fora do templo maçônico refletiram no cenário político da sociedade brasileira do século XIX.
Uma das demonstrações de como a maçonaria agiu como espaço de debate sobre questões da sociedade e como agente em busca de mudanças pode ser encontrada nas Filipinas, em finais do século XIX, como Katipunan.
O Kataas-taasan, Kagalang-galangang Katipunan ng̃ mg̃a Anak ng̃ Bayan, que em português significa Suprema e Venerável Sociedade dos filhos da nação, foi criada por maçons em 7 de julho de 1892, com dois objetivos simples e diretos: Promover a integração e a unidade entre os diferentes povos que habitavam as Filipinas e conseguir para as ilhas a completa independência da Espanha.
Durante pelo menos 4 anos, a sociedade agiu em completo segredo, promovendo pouco a pouco, diversos episódios que contribuíram para o fortalecimento moral da sociedade em sua busca por liberdade. Quando em 1896 a coroa espanhola descobriu sua existência, a sua fundação era tão sólida que os espanhóis nada puderam fazer para impedir a continuidade dos seus planos.
Assim, o objetivo desse trabalho é levantar o estudo de um episódio histórico, onde a maçonaria mais do que nunca, se mostrou como um poderoso e eficiente agente de transformação social, agindo de maneira ativa sem deixar seu caráter filosófico e fraterno de lado. Antes, porém, nos é necessário que façamos um breve histórico das Filipinas, para que possamos entender o papel do katipunan.
[1] Camino, Rizzardo da. Simbolismo do Primeiro Grau – Aprendiz. Rio de Janeiro: Editora Aurora.
[2] Barata, Alexandre Mansur. Compasso e esquadro na sala de aula. Nossa História. Rio de Janeiro, nº20 junho 2005, p 22.
Capítulo 2: As Filipinas
A República das Filipinas é um país do continente asiático, formado por mais de 7000 ilhas. Com uma grande população, as Filipinas estão no ranking dos 20 países mais populosos do mundo. O inglês hoje é a língua comum, porém diversos dialetos como o Filipino, Tagalog, Cebuano entre outros podem ser escutados nas suas ruas, resquícios da longa história das suas terras.
Antes do surgimento da república, aquelas terras serviram como berço e cenário de diversas civilizações. Podemos traçar a história de povos que chegaram por volta de 500 a.C. às ilhas, porém é a partir do século X que sultanatos, rajanatos e outros reinos polvilhavam pelas ilhas. Impérios de origem hindu, outros muçulmanos e mais tantos pagãos.
Para o “mundo ocidental”, a história das filipinas começa no século XVI, quando o português Fernando de Magalhães, a serviço da coroa espanhola, realizou a sua viagem de circunavegação do mundo. Partindo no dia 20 de setembro de 1520, Magalhães chegou as Filipinas em março de 1520.
Antonio Pigafetta, geógrafo italiano que viajou na expedição de Magalhães, registrou todos os momentos da viagem em um diário, ao qual publicou com seu retorno a Europa. Após se encontrar com chefes e monarcas de reinos menores, Magalhães foi conduzido a corte do rei de Cebu. Diversos pactos foram feitos, principalmente após demonstrações do poderio bélico europeu, que culminaram com a conversão de toda a corte de Cebu e de reinos aliados ao cristianismo e a criação de votos de fidelidade com a Espanha.
Pigafetta escreveu em seu diário [1]:
O capitão disse ao rei que entre as vantagens de tornar-se cristão estava a de vencer mais facilmente os seus inimigos. O rei respondeu que estava muito contente em converter-se, mesmo sem benefício algum. Mas salientou que lhe agradaria muito poder fazer-se respeitar por certos chefes de ilhas que não queriam submeter-se à sua autoridade.
Os reinos que existiam nas Filipinas, eram famosos no mundo antigo por suas relações com outros povos. Um dos reinos do norte, chamado Manila, havia desenvolvido um forte canal comercial com a China no século X. Assim, diferente da visão ingênua e preconceituosa que nós possamos vir a ter, os antigos habitantes das ilhas não eram tolos na arte do negociar.
É sabido porém que os monarcas de Cebu já conheciam a fama dos europeus de conquistadores. Tanto que quando Magalhães chegou a Cebu, mercadores mouros aconselharam ao rei sobre como proceder para com aqueles “portugueses” que acabavam de chegar às suas terras. Magalhães, ao descobrir isso, soube sabiamente se aproveitar da situação, aumentando sua fama ante o rei, argumentando que eles não serviam a coroa portuguesa, e sim a uma outra, maior e mais poderosa, que era a coroa espanhola.
Com o auxílio dos espanhóis, o rei de Cebu passou a investir contra os reinos que lhe faziam oposição, submetendo um a um ao seu domínio. Até que estes se puseram contra a ilha de Mactán. Dividida, a ilha era comanda por dois datus, um de nome Zula e outro chamado Lapu-Lapu.
Ciente do grande poder bélico que os estrangeiros tinham, Zula se dirigiu ao monarca de Cebu. Prometendo recursos e aliança, caso os Europeus lhe auxiliassem em uma batalha contra Lapu-Lapu,.que publicamente havia registrado sua desconfiança para com os europeus e sua crença cristã.
Assim, em 27 de abril de 1521, espanhóis, cebuanos e guerreiros de Zula, partiram para uma batalha contra os guerreiros de Mactan liderados por Lapu Lapu. Podemos supor que esta tenha sido breve porém sangrenta, pois como o próprio italiano narrou em seu diário:
Os nativos perceberam que seus golpes na cabeça ou no corpo não nos atingiam por causa das nossas armaduras, porém, que as pernas estavam indefesas. E para elas concentraram suas flechas, lanças e pedras, de maneira tão intensa que não pudemos resistir. Então, nos retiramos lentamente, mas combatendo sempre. Além disto, as bombardas que levávamos nas chalupas se tornaram inúteis por causas dos arrecifes. À medida que nos retirávamos pela água, os nativos iam apanhando as lanças que já haviam atirado contra nós e voltavam a arremessá-las, fazendo isto por outras cinco ou seis vezes. Como conheciam bem nosso capitão, ele se tornou seu alvo preferido. Por duas vezes o derrubaram, mas ele se manteve firme enquanto combatíamos ao seu redor. O combate desigual durou uma hora. Um ilhéu conseguiu, em dado momento, colocar a ponta de sua lança na frente do capitão, mas este furioso, conseguiu ser mais rápido, cravando a sua lança no inimigo, onde ficou presa. Tentou então sacar a espada, mas não pôde por estar gravemente ferido no braço direito. Dando-se conta disso, um dos nativos avançou com um sabre, acertando a perna esquerda, fazendo-o cair de cara na água e arrojando-se por fim contra ele.
A morte de Magalhães e a derrota dos espanhóis, serviram para desmoronar a recém-criada, e ainda instável, aliança entre cebuanos e europeus. A expedição então retomou seu rumo, e durante duas décadas, aquele pedaço de mundo ficou longe das mãos da coroa espanhola.
Longe das mãos porém não significa que tivesse sido esquecida. Em 1543, Ruy Lopes de Villalobos visitou as ilhas. Era desejo do rei, melhor mapear aquele local, ao qual o Italiano havia descrito e que havia sido o porto final do grande Magalhaẽs. Foi nessa viagem, que o arquipélago recebeu o nome de Filipinas, em homenagem ao príncipe Felipe de Astúrias.
Foi então em 1571, que Miguel Lopez Legazpi chegou ao arquipélago. Diferente da esquadra da Magalhães, a de Legazpi vinha com um objetivo claro de através da força, dominar os reinos ali existentes e fazer a bandeira espanhola tremular sobre todas aquelas terras.
Durante os anos que se seguiram, Legazpi conseguiu trazer alguns regentes para o seu lado, ao mesmo tempo em que aniquilou a oposição. Sua única derrota foi a de não ter conseguido subordinar os reinos muçulmanos da região de Mindanao. Essa na verdade, seria uma constante durante todo o período de dominação espanhola, que seria a coexistência, ora pacífica e ora violenta, com os reinos islamizados.
Com a vitória de Legazpi, As Filipinas se tornariam território espanhol, parte do Vice Reino de Nova Espanha com sede na Cidade do México. As decisões importantes eram tomadas pelo Conselho das índias, cabendo a sua execução ao Governador Geral, chefe das tropas espanholas nas ilhas.
O antigo reino de Manila foi escolhido para sede do arquipélago, devido a sua posição geográfica, porém agora não mais como um reino e sim uma cidade. Dentre as outras funções que o Governador Geral dispunha, vale mencionar o de presidente da Real Audiência, o maior corpo judiciário local. Além disso, seu cargo lhe conferia autoridade para inclusive inferir em assuntos eclesiásticos da Igreja Católica Romana, agora única religião permitida nas ilhas.
O historiador Teodoro Agoncillo [2] descreve que o salário de um governador geral era de aproximadamente 40 mil pesos por ano, porém era muito comum que este aumentasse, devido a presentes recebidos em troca de certas decisões.
Abaixo do governador geral, existia o Alcaide, que era o governador provincial, responsável por áreas já pacificadas e os Corregedores, responsáveis por regiões ditas selvagens. Junto com o governador geral, estes cargos formavam a alta cúpula administrativa das Filipinas durante o período colonial, sendo estes exclusivos para espanhóis.
Abaixo destes, existiam os capitães municipais, responsáveis por pequenos ajuntamentos e cidades. Estes cargos podiam ser ocupados por filipinos, e mestiços chineses, que tivessem ao menos 25 anos e fossem alfabetizados.
Durante a invasão de Legazpi, muitos nobres optaram por juntar forças aos espanhóis do que a combatê-los. Seja por impossibilidade militar, ou por ver nesse ocorrido uma possibilidade para saldar antigas dívidas com oponentes, a questão é que esses nobres acabaram por se tornar os capitães municipais, o que lhes permitiam exercer novos poderes dentro da estrutura colonial então vigente.
Mesmo não estando no topo da pirâmide de poder, eles formavam uma classe que foi chamada de Principallia, e que teria grande importância ao manter as classes baixas da população condicionadas a trabalhar sob o controle europeu.
É difícil traçar um quadro geral da colonização espanhola das Filipinas. Devido a grande quantidade e diversidade populacional, esta agiu de diferentes maneiras. Em algumas regiões por exemplo, o uso da encomienda, ou seja, o trabalho coletivo para o estado ou para um chefe civil, foi aplicada com relativo sucesso. Em outras regiões, essa pratica não surtiu os mesmos efeitos.
Como ocorreu em outras regiões de colonização espanhola, a Igreja Católica esteve junto, abrindo as primeiras instituições de ensino voltadas para os filhos da principallia local. Foi em 1596, que foi fundado o Colegio de Niños na recém-criada cidade de Manila, pelos padres Jesuítas. Essa seria seguida de outras, como o Colegio Maximo de São Inácio, Colégio de São Ildefonso, Colégio de São José, entre outros. Muitos deste, durante o século XVII se tornariam universidades.
As mulheres não foram esquecidas. Também no século XVII, diversos colégios para moças, como o de Santa Potenciana e o de Santa Isabel, foram criados. Em um primeiro momento, apenas as filhas de espanhóis podiam estudar nestes, porém com os anos, a abertura para as filhas da principallia acabou por ocorrer de forma natural.
A existência desse modelo de colégio, seria duramente criticada no século XIX, pois ela servia mais para alimentar jovens mentes das classes altas em um contexto pró-espanha, do que para efetivamente levar educação e conhecimento. Se esperava assim, diminuir o abismo ideológico entre a alta classe nativa e os dominadores, enquanto as classes baixas continuavam a viver em ignorância.
Ainda que a educação jesuítica oferecida a principallia servisse para fixar a subordinação ante os Europeus, essa crença acabou por não ser forte o suficiente para sufocar uma das maiores criticas existentes durante a época colonial, que era a da taxação sem representação. Diversos impostos eram empregados pelo governo ao povo das ilhas, sem que este visse qualquer retorno, além da disposição de tropas em combatê-lo.
Trabalhos forçados, falta de acesso as esferas superiores de poder, corrupção das autoridades hispânicas, monopólio comercial, trabalhos forçados. Características da colonização espanhola que em muito desagradavam aos filipinos e que desencadearam diversas revoltas, que pontilharam o território durante o século XVIII.
O trabalho das autoridades nesses casos foi sempre bastante pontual, buscando tratar cada caso como um movimento isolado, visto que em todas essas revoltas apresentavam algumas características básicas: ser compostas por grupos pequenos e locais e sem grande expressão no território como um todo e lutando contra um determinado aspecto da colonização, e não contra os espanhóis em si.
Uma das justificativas para a pouca abrangência das revoltas era a falta de uma identidade nacional para o povo Filipino. Até então, estes se viam não como um povo único, mas como uma série de civilizações espalhadas por um arquipélago e reunidas artificialmente sob uma única administração estrangeira.
A segunda questão foi a linguagem, que durante muito tempo foi um entrave nas relações entre os Filipinos. Para se ter uma ideia, hoje as duas línguas oficiais das Filipinas são o inglês e o filipino. O inglês é a língua do estrangeiro, dos norte-americanos, que ocuparam o arquipélago durante a primeira metade do século XX. O Filipino por sua vez é uma língua artificial, planejada para funcionar como um meio termo entre os dialetos indígenas mais falados, e oficializado na segunda metade do século XX.
Foi na segunda metade do século XIX, que uma nova geração de aristocratas filipinos, educados na Europa, começaram a trazer para as ilhas uma nova visão sobre o problema da dominação e a colonização, junto com alternativas, planos e ideias para alterar essa situação. O resultado dessas mudanças resultaram no katipunan, objeto desse estudo e que iremos estudar com mais detalhes nos próximos capítulos.
Foi a partir de 1896 que a luta pela liberdade deixou de ser um plano, e tomou ares de uma guerra efetiva contra a Espanha. Planos criados em cima de um sedimentado desejo coletivo, fizeram com que essa guerra fosse ganha em 1898.
Nessa mesma época, a coroa Espanhola se encontrava em guerra com os Estados Unidos da América, pelas colônias mexicanas. Derrotada em ambos os lados do globo, a coroa espanhola se utilizou de uma artimanha; abandonar a guerra americana entregando as Filipinas (que já não mais possuía) como espólio de guerra aos vitoriosos.
Assim, nos primeiros anos do século XX os Filipinos se viram as voltas com uma nova guerra não planejada, dessa vez contra os americanos, que chegam no arquipélago visando ocupá-la. Sem planejamento e sem recursos, foi questão de pouco tempo até os americanos declararem sua vitória, transformando as Filipinas em um protetorado.
Durante esse período, os americanos ofereceram a chance para que as Filipinas se tornassem um dos estados da federação. Tal proposta acabou rejeitada em um plebiscito. Pouco tempo depois, a segunda guerra mundial explodiu, e as Filipinas passaram a ter de lutar contra a invasão dos japoneses em seu território.
Ao fim da segunda guerra mundial, os americanos então entregaram as ilhas, e o povo Filipino finalmente pode proclamar o seu grito de liberdade, nascendo assim a República das Filipinas.
[1] Pigafetta, Antonio. A primeira viagem ao redor do mundo. Porto Alegre: LP&M, 2007.
[2] Agoncellio, Teodoro A. History Of The Filipino People. Quezon, RG, 1990.
Capitulo 3: O Filipino
Agora que temos em mente uma visão geral sobre a história das Filipinas, precisamos dedicar alguns instantes a refletir sobre o povo deste país. Espero que ao final deste breve capítulo possamos ter em mente alguns conceitos que nos permitam ao menos esboçar uma resposta para a pergunta: quem é o Filipino?
No primeiro capítulo do seu livro[1], Tomas e Pilar Andres definem os Filipinos da seguinte maneira:
“Os Filipinos são uma feliz mistura de diferentes etnias, basicamente malaios com chineses, espanhóis, indianos e americanos. Seus valores e modos devida são moldados por diversos, e às vezes conflituosos valores, o que resultam em uma mistura que torna o Filipino único. Em suas veias correm os valores do Cristianismo europeu, o pragmatismo e a democracia americana, e a espiritualidade asiática.”
Durante o período colonial, as Filipinas eram chamadas de As Ilhas Filipinas e seus habitantes eram divididos basicamente em três categorias:
- Peninsulares: os espanhóis;
- Filipinos: filhos de espanhóis que nasceram nas ilhas;
- Índios: população de origem não europeia das ilhas.;
Apenas na segunda metade do século XIX, sob impulso de diversos movimentos culturais que o termo “Filipino” passou a ser gradativamente empurrado para abranger todos os habitantes nascidos nas ilhas.
Mesmo no século XIX, carga de discriminação ao qual os “índios” eram submetidos pelos espanhóis e “filipinos” era notória. Em 1885, um frade franciscano chamado Miguel Lucio y Bustamante publicou um documento, que trazia os seguintes dizeres:
“Um espanhol sempre será um espanhol e um índio sempre será um índio. Um macaco sempre será um macaco, por mais que você o vista com roupas e lhe dê tesouros, pois ele é um macaco e não um ser humano”.
Dentre as diversas obrigações sociais aos quais os índios deviam se submeter a superioridade europeia, podemos citar:
- retirar o seu chapéu sempre que dirigir a palavra para um espanhol;
- no caso de um clérigo espanhol, sempre beijar-lhe a mão antes de falar;
- nunca se sentar em uma mesa onde haja um espanhol;
Em 1849 os índios perderam o direito de sequer poder escolher livremente o nome de seus filhos. Um documento, o “Catalogo alfabetico de apellidos”, publicado pelo então governador Narciso Claveria, que trazia uma compilação de nomes hispânicos, de santos, flora, fauna e alguns poucos nomes nativos e chineses.
Se o tratamento secundário dado aos nativos encontrou terreno fértil durante os primeiros séculos do período colonial, o mesmo não ocorria no século XIX. A principallia colonial havia se transformado em uma verdadeira aristocracia de nativos, que cada vez ganhavam mais força, poder e status. Era comum a esses, não mais educar seus filhos nas ilhas, mas na Espanha, onde voltavam diplomados em diversas áreas.
Fora isso, por mais isolada que as Filipinas estivessem, culturalmente do restante da ásia e geograficamente da Europa e da Nova Espanha, ecos dos movimentos revolucionários, das luzes que se espalhavam, chegavam e reverberavam em meio a sociedade colonial, encontrando nessa principallia um terreno fértil por onde pudessem nascer os brotos do katipunan
[1] Andres, Tomas e Andres, Pila Ilada. Understanding the Filipino. Quezon: New Day Publishers, 1987.
Capítulo 4: Conflitos
Desde o seu primeiro contato, os europeus estabeleceram uma relação bem forte entre o processo de dominação das ilhas e a religião. Essa relação se estendeu a níveis institucionais, com a Igreja Católica Romana sendo um dos pilares do processo, seja como agente evangelizador das encomiendas, ou como força principal dos conjuntos urbanos, onde todos as cidades tinham a igreja como prédio central.
No decorrer dos séculos, algumas mudanças no direcionamento político da coroa espanhola, acabaram influenciando o modo como a igreja, enquanto instituição, se posicionou ante o governo. Em 1583 um decreto de Felipe II publicou uma preferência da coroa pelos padres seculares ante os religiosos, no controle das paróquias do Novo Mundo. Essa preocupação com os padres religiosos, fez com que em 1753 Fernando VI voltasse ao tema, tentando secularizar por completo todas as paróquias existentes. Sem sucesso, ele optou por seguir o exemplo do Marques de Pombal em Portugal, decretando a expulsão da ordem que mais lhe ameaçava, que eram os Jesuítas.
Para o povo, uma questão que estava em voga era a disponibilidade religiosa para o índio filipino. As ordens religiosas recusavam o ingresso de qualquer nativo, argumentando que este não possuía capacidade para a espiritualidade e para a compreensão plena das escrituras. O clero secular por sua vez assumia uma postura distinta, tanto que no século XVII os nativos Agustin Tabuyo, Miguel Jeronimo e Francisco Baluyot acabaram por receber a ordenação de padre, nos anos de 1621, 1655 e 1698.
Dessa maneira, foi uma questão de tempo para que no início do século XIX o número de clérigos seculares superasse os religiosos. No final daquele século, essa diferença numérica fez com que boa parte dos clérigos e das paróquias assumissem uma identidade nativa que lhe permitia uma maior simpatia com ideais pró-independência, lutando e auxiliando os combatentes que se levantavam contra o domínio colonial.
Alguns padres se mantiveram ativos na luta e no planejamento das revoltas, como foi o caso Pedro Palaez em Manila e Mariano Gomez em Cavite. Esse último acabou condenado a morte junto com os padres Jose Burgos e Jacinto Zamora em 1872, sob a acusação de fomentar um movimento que invadiu e o forte de São Felipe. Na época, membros de ordens religiosas foram acusados por clérigos seculares de entregar e forjar provas contra outros padres, que acabaram mortos com a acusação de terem atentado contra a ordem e a coroa.
O início do século XIX foi marcado por uma sucessão de lutas e derrotas para o Reino de Nova Espanha. Diversos territórios na América do Sul clamavam e adquiriam sua independência da Espanha, o que ecoava em todos os demais territórios colonizados.
Visando melhorar o controle sobre o território filipino, a coroa resolveu em 1849 devolver todos os territórios e administrações retirados dos dominicanos, e em 1851 dos jesuítas. Os frades das ordens religiosas, todos de origem europeia, trabalharam então para dizimar o poder que se encontrava nas mãos dos padres seculares nativos.
Capítulo 5: A Classe Média e os Movimentos de Reforma
Se nos primeiros séculos do período colonial o preconceito social era destinado aos índios, nativos das ilhas, no século XIX ele acabou por se estender aos Filipinos, ou seja, os insulares ou descendentes de europeus nascidos nas ilhas.
Foi nesse mesmo século que alguns membros das três principais etnias das ilhas, isso é, filipinos(insulares), índios e mestiços, conseguiram, graças aos avanços econômicos e as mudanças sociais na Europa, se elevar de uma mera plebe para uma verdadeira aristocracia urbana.
Essa aristocracia possuía três grandes trunfos em sua manga: acesso a cultura, com filhos sendo educados na Europa; dinheiro, para aquisição de bens de luxo; poder sobre as classes baixas da sociedade. Ainda assim, algo lhes faltava, que era o reconhecimento social por parte da coroa e dos governadores peninsulares que eram enviados para as ilhas.
A busca por melhores condições sociais levou a uma união entre membros das três etnias. Embora um detalhe parecia fazer a diferença, pois embora a motivação fosse a mesma, os objetivos eram distintos: os índios e mestiços buscavam a independência, enquanto os insulares buscavam meramente a reforma.
Assim, durante todo o século XIX, diversos nomes se destacaram em sua luta, seja pró-independência ou pró-reforma. Citar a todos seria longo e fugiria do objetivo principal desse livro, por esse motivo um nome apenas será lembrado e mencionado: José Rizal.
José Protasio Rizal Mercado y Alonso Realonda. Nascido em 19 de junho de 1861, filho de Francisco Mercado e Teodora Alonzo. Desde a mais tenra infância, Rizal demonstrou tendencias nacionalistas, tendo escrito com apenas 8 anos o poema Sa Aking Kabata, descrevendo o seu amor pelo idioma tagalog.
Durante sua juventude, dois episódios acabaram por marcar a vida de Rizal: o primeiro ocorreu quando Rizal era bem jovem, e havia sido enviado para Manila, para frequentar a escola local. Uma briga conjugal fez com que em determinado momento seu tio Don José Alberto, retornasse de uma Espanha para descobrir que sua esposa o havia abandonado e fugido de casa. Desconsolado, Alberto procurou a mãe de Rizal, que interviu conseguindo trazer a esposa de volta a casa do tio.
Meses depois, a esposa tornou a fugir, procurando o Alcaide local e acusando o esposo de tentar envenená-la e a mãe de Rizal de ser cúmplice. Com a ajuda de um dos seus amantes, oficial da guarda civil, ambos acabaram condenados e dona Teodora acabou presa na cidade de San Pablo. Foram então 2 anos e meio de muitas tentativas e de diversos pedidos do pai de Rizal, até que o juíz Francisco de Marcaida acabou por aceitar rever o caso, o que resultou na absolvição de Teodora.
A segunda injustiça ocorreu aos 18 anos, quando Rizal, com seu brilhante talento para a literatura, venceu um concurso disputado por diversos outros estudantes europeus participando com seu texto “El Consejo de Juventud Filipina”. Infelizmente, mesmo aclamado, ele acabou impedido de buscar seu prêmio, pelo simples fato de não ser espanhol e sim filipino.
De volta as ilhas, Rizal se pôs a escrever cada vez mais, produzindo textos de grande riqueza e beleza literária, porém recheados de pérolas pró-independência e contra a colonização. Eram os novos ares das luzes europeias que chegavam as ilhas sob forma de poesia.
Uma de suas novelas, Noli Me Tangere, apresentava como pano de fundo a crise social pela qual passava a sociedade filipina e acabou se tornando um dos livros mais lidos daquela geração. Não demorou para que ele caisse nas mãos das autoridades e tivesse a sua circulação proibida.
Gênio que era, Rizal não demorou a produzir outros textos e novelas contra a coroa, chegando até mesmo a dedicar um volume à memória de Burgos, Gomes e Zamora. Assim, em 7 de Julho, Rizal acabou deportado para Dapitan, no extremo norte das Filipinas. Depois de algum tempo, com autorização do governador, Rizal rumou para Cuba, onde tentou viajar ilegalmente para Barcelona, onde foi capturado e condenado a morte em 30 de dezembro de 1896.
Capítulo 6: Maçonaria
Como já dissemos, a Maçonaria pode ser definida como uma “Associação Universalista, Filantrópica, Espiritualista, Humanitária e Progressita, que baseia sua ação dos postulados de Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. [1] Sua origem se encontra perdida no tempo, embora suas bases modernas se encontrem na Inglaterra do século XVIII.
A maçonaria como instituição, chegou as ilhas filipinas em 1856, com a fundação da Loja La Primera Luz Filipina, filiada ao Grande Oriente Lusitano. Com o passar dos anos, novas lojas foram criadas, dentre as principais Balagtas nr 149, Taliba nr 165, Pilar nr 203 e Bagong Buhay nr 291. Essas porém optaram por se filiar ao Grande Oriente Espanhol.
Com o grande número de filhos de membros da principallia que viviam na Espanha, não demorou para que estes ingressassem e tomassem rédeas da maçonaria. Assim, no dia 1º de Abril de 1889 foi fundada em Barcelona a primeira loja maçônica composta exclusivamente por Filipinos, sendo essa chamada de Revolución, inicialmente formada por Graciano Lopez-Jaena, , Mariano Ponce, Antonio Luna, Marcelo del Pilar e Rizal.
Comumente chamada de Sociedade Secreta, a Maçonaria é antes de mais nada uma Sociedade Discreta, onde no século XIX membros de diferentes classes altas e intermediárias se reuniam, formando assim um ambiente propício para que ideias pouco aceitas pela sociedade – como a independência de uma colônia – pudesse vir a ser debatida.
O problema ao qual os Filipinos no território espanhol se viam era o de como debater sobre a independência das ilhas contra a Espanha, em uma instituição onde outros membros eram espanhóis. Haveriam eles de guardar segredo sobre o que ali acontecia?
Em um de seus livros[2], Rizzardo da Camino fez o mesmo questionamento:
“Supondo-se que dentro de uma Sessão um Irmão, por qualquer motivo ou circunstância, pronuncie uma injúria contra alguém, seja profano ou maçom; essa hipotética injúria que constitui crime poderá extravasar dos limites da Loja e terminar nos tribunais profanos?”
Decerto que nenhum maçom filipino quis arriscar testar esses limites, assim a criação de uma loja exclusiva para filipinos era um acontecimento natural e esperado, assim como certos mecanismos que Camino também comenta:
“A escassez de documentos maçônicos teve como causa, precisamente a preocupação das Lojas, nas épocas de perseguições e despotismos, de não registrar os assuntos que poderiam comprometer a qualquer de seus membros.”
Tendo um nome tão sugestivo, a loja Revolução acabou por ser dissolvida no ano seguinte, dando lugar a loja Solidariedade. Foi a partir desta, que o Grão Mestre do Grande Oriente Espanhol Miguel Morayta, que também era professor da Universidade Madrid, resolveu apoiar os filipinos na difusão da maçonaria entre os habitantes das ilhas.
Em 6 de janeiro de 1892, Moises Salvador, José Ramos e Pedro Serrano Laktaw, organizaram a loja Nilad em Manila, obtendo o reconhecimento pelo Grande Oriente Espanhol em 20 de março daquele ano, sob o número 144, para no mês seguinte receber - com o apoio de Rizal - o título de Loja Mãe das Filipinas e com autoridade espanhola para ser o poder central das lojas das Filipinas.
Assim, surgiu a loja Balagtas 149, já sob os auspícios da loja Nilad. Poucos meses depois, diversas outras acabaram fundadas nos mais diferentes pontos das ilhas, atraindo a elite cultural desejosa de um espaço político e social onde se pudesse debater o cenário político vigente.
Uma característica da maçonaria filipina, foi a de ter optado por um modelo misto. Em 1893, mulheres como Rosario Villaruel, Trinidad Rizal, Sixta Fajardo, entre outras, acabaram devidamente iniciadas pelos ritos regulares.
Com a rápida ascensão no número de membros, não demorou para que os clérigos das ordens religiosas iniciassem as mais diversas e absurdas denúncias contra as lojas maçônicas, obrigando o governo colonial a se posicionar. Foi assim que, poucos meses depois, a Loja-Mãe Nilad baixou novas regras sob a sindicância a ser feita com os candidatos - o que gerou diversas críticas negativas por parte dos maçons de outras lojas, que começaram a questionar a autoridade da Loja Nilad.
Refém dos desmandos dos clérigos e do governo, a Loja Nilad se isolava cada vez mais dos anseios dos maçons filipinos. Em março de 1893, Pedro Camus, mestre da Loja Labong, reuniu diversos irmãos em sua casa, para juntos debaterem a necessidade da criação de um órgão maçônico nacional genuinamente filipino - um Grande Conselho Nacional ou uma Grande Loja Filipina.
Em 16 de abril de 1893, Faustino Villaruel, da Loja Walana, convocou os irmãos para, sob os auspícios do Grande Oriente Espanhol, traçar os rumos da maçonaria filipina, independente da loja Nilad - que ao saber da reunião tentou de todas as maneiras anular a validade do encontro.
Assim, em 20 de abril de 1893 nasceu o Gran Consejo Regional, que depois de meses de disputas com os membros da Loja Nilad, conseguiu no dia 10 de dezembro daquele ano o reconhecimento pelo Grande Oriente Espanhol.
As disputas internas, aliadas as perseguições eclesiásticas e políticas, fizeram com que muitos maçons acabassem presos, deportados e executados, gerando uma violenta reação por parte da loja Solidaridad, que emitiu a seguinte nota:
"A Maçonaria existirá enquanto houver tirania, pois a Maçonaria é o protesto organizado dos oprimidos. A tirania prevalecerá nas Filipinas enquanto o governo permanecer nas mãos dos frades e religiosos, a serviço de seus próprios interesses. Por essa razão, a tirania das Filipinas é sinônimo de oligarquia e dos frades, por isso, lutar contra a tirania é lutar contra os frades"
Vale a pena esclarecer que o termo frade é comumente usado, pois a luta dos revoltosos não era com o clero em geral, e sim contra aqueles subordinados as ordens religiosas e que deviam obediência não a seu Deus ou ao seu país, e sim ao seu líder.
[1] SILVA, Hailton Meira. Cultura Geral Maçônica no Brasil e no Mundo. Rio de Janeiro: Menthor, 2009.
[2] CAMINO, Rizzardo da. Simbolismo do Segundo Grau. São Paulo: Madras, 2009.
[3] History of Philippine Mansory. http://goo.gl/GZkrC
Capítulo 7: La Liga Filipina
Uma sociedade que surgiu em paralelo ao vertiginoso crescimento da maçonaria nas Filipinas foi a Liga Filipina. Idealizada por Rizal, essa sociedade tinha por objetivo disseminar material pró independência e encontrar meios sustentáveis para se massificar a educação nas Filipinas.
Sua fundação oficial ocorreu no dia 3 de julho de 1892 em Tondo, onde foram eleitos Ambrosio Salvador como presidente, Agustin de la Rosa como fiscal, Bonifacio Arevalo como tesoureiro e Deodato Arellano como secretário.
As premissas da sociedade eram a união do arquipélago em uma unidade. A mútua cooperação entre os membros. Defesa contra todas as formas de violência e injustiça. Encorajamento da educação, agricultura e comércio. Estudo e aplicação de reformas.
Sim, a Liga era reformista, e dentre as suas premissas estava a produção do jornal A Solidariedade e de outros materiais panfletários tanto das Filipinas quanto na Espanha. Outra atividade da Liga Filipina era a benemerência. Mensalmente os membros recolhiam fundos entre si, que eram utilizados em ações filantrópicas junto aos pobres e aos injustiçados.
Se o pensamento da Liga era progressista e conciliatório, o mesmo não podia ser dito do governo colonial. Assim, em pouco mais de um mês de atividade, no dia 6 de julho, Rizal foi preso e a Liga oficialmente fechada.
Com o fim desta, os membros engajados que não foram presos optaram por se dividir de acordo com sua vocação. Aqueles reformistas, aguardaram o momento para tentar reerguer a Liga em um formato tolerado pelo governo espanhol, chamado Círculo Filipino. Os radicais, que desejavam a independência irrestrita do país, optaram pela criação de uma nova sociedade, o Katipunam.
Assim, na noite do dia 7 de julho, Ladislao Diwa, Andres Bonifacio, Teodoro Plata, Valentin Diaz, Jose Dizon, os 5 maçons da Loja Taliba junto com Deodato Arellano da Loja Lusong se reuniram em Azacárraga, próximo a Rua Elcano e fundaram o Katipunam.
A primeira preocupação dos membros era para com a segurança de todos os envolvidos. Assim, se decidiu que todas as reuniões ocorreriam com os membros devidamente encapuzados e que a estrutura da sociedade seria em pirâmide, de modo que cada membro soubesse no máximo a identidade de outros dois.
Capítulo 8: Princípios da Irmandade
A preocupação inicial dos primeiros Katipuneiros foi para com o objetivo final da sociedade e a segurança de seus membros. Assim, foi apenas nas reuniões seguintes que o diagrama e as bases filosóficas da sociedade foram tomando forma, em grande parte tomando emprestado o simbolismo maçônico, visto que todos os membros originais eram pertencentes a essa sociedade.
O objetivo da sociedade era tríplice, focando o lado moral, cívico e político, com as seguintes diretivas:
- moral:ensinar boas maneiras, higiene, valores morais e acabar com o fanatismo e a fraqueza de caráter.
- Cívico: promover a autoajuda e disseminar meios que permitissem a defesa pessoal do cidadão comum.
- Político: Lutar pela indepedência.
Foi André Bonifácio um dos grandes responsáveis por esse direcionamento maçônico e filosófico. É de sua autoria a cartilha chamada o Decálogo, com os mandamentos do Katipunam.
1. Ame a Deus com todo o teu coração.
2. Tenha sempre em mente que o amor de Deus é também o amor à pátria, e isso também é amor ao próximo.
3. Grave em seu coração que, na verdadeira, não há maior honra e felicidade do que morrer pela liberdade do seu país.
4. Todos os seus desejos bons serão coroados de sucesso se você mantiver a serenidade, a constância, a razão e a fé em todos os seus atos e esforço.
5. Preserve os mandatos e os objetivos do katipunan, da mesma maneira como você preserva a sua honra.
6. É dever de todos proteger, sob o risco de suas próprias vidas e riqueza, aquele que se arrisca durante o exercício do seu dever.
7. Nossa responsabilidade para nós mesmos e ao desempenho de nossas funções será o exemplo dado por nosso semelhante a seguir.
8. Na medida do possível, compartilhe algo com os pobres e os infelizes.
9. Diligência no trabalho que lhe dá sustento é a verdadeira base do amor - o amor para o si próprio, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e seus compatriotas.
10. Puna qualquer canalha e traidor e louve todo o trabalho bem executado. Acredite também que os objetivos da K.K.K. são dados por Deus, para a vontade do povo é também a vontade de Deus.
Tão importante quanto o decálogo, era Kartilya ng Katipunancartilha que foi escrita por Emilio Jacinto, braço direito de André Bonifacio, que compreendia 14 regras morais, que deveriam servir para nortear os membros:
1. A vida não dedicada a uma causa nobre é como uma árvore sem sombra ou com frutos venenosos.
2. A ação não tem nobreza, caso seja motivada por interesse próprio e não possua um desejo sincero de ajudar.
3. A verdadeira piedade consiste em ser caridoso, companheiro e criterioso quanto a seu comportamento, discurso e ação.
4. Todas as pessoas são iguais, independente da cor de sua pele. Alguém pode ter mais escolaridade, saúde e beleza, mas isso não o faz mais humano do que os demais.
5. Uma pessoa de caráter nobre mantém valores nobres acima do interesse próprio, enquanto uma pessoa de caráter mundano deixa seu interesse pessoal acima da honra.
6. Para quem tem honra, a palavra é uma promessa.
7. Não perca tempo. A saúde perdida pode ser recuperada, porém o tempo se perde para sempre.
8. Defenda o oprimido e lute contra o opressor.
9. O sábio é cuidadoso no dizer e discreto sobre coisas que devem ser mantidas em segredo. Inteligente é o homem que entende isso.
10. Se o líder caminha para a perdição, assim caminharão seus seguidores.
11. Nunca trate uma mulher como um objeto que possa ser usado. Trate-a como uma companheira, uma parceira. Saiba considerar as fragilidades femininas, e nunca se esqueça de que sua mãe, que o alimentou desde a infância, é também uma pessoa.
12. Não faça nada a esposa, filhos, irmãos e irmãs de outros o que você não gostaria que os outros fizessem com sua esposa, filhos, irmãos e irmãs.
13. O valor de um homem não pode ser medido por sua posição social, pelo tamanho de seu nariz, nem pela sua pele, e certamente não será por ser ele um padre, que ele poderá se assumir como um portador da vontade divina. Saiba usar sua percepção e seja leal a sua terra natal.
14. Quando essas palavras forem propagadas livremente, e o sol da liberdade começar a brilhar pelas pobre ilhas, unindo raças e povos, então nesse momento, todos saberemos que todas as lutas, sacrifícios e mortes não terão sido em vão.
É interessante notar a semelhança que existe entre o katipunan com um outro movimento que surgiu na Europa, no início do século XIX, chamando carbonari. Esta sociedade, também inspirada pela maçonaria, nasceu com uma fraternidade anti francesa no norte da Itália, durante a dominação napoleônica. Embora sua estrutura fosse iniciática, seu objetivo era político, lutando primeiro contra a dominação estrangeira e depois pela unidade nacional.
Os carbonari, influenciaram diversas fraternidades de cunho político durante o século XIX. No Brasil, o Apostolado fundado por José Bonifácio foi um dos grandes marcos da influência carbonária na política sul americana.
Capitulo 9: Atuação
Fundado por maçons, o katipunan não se limitou a buscar aí possíveis candidatos para as suas fileiras. A bem da verdade, decepcionados pelo fracasso da Liga em tomar uma direção combativa, alguns dos fundadores do katipunan expressarem um sincero desejo de evitar a presença de letrados nas fileiras do katipunan, buscando apoio entre as classes menos abastadas.
Foi assim que a sociedade viu suas fileiras sendo reforçadas por atendentes, cozinheiros, trabalhadores da industria de tabaco, empregados de famílias abastadas, entre outros que nas palavras de Jim Richardson poderiam “indubitavelmente chamados de proletários, no sentido marxista”.[1]
Para esses, o simbolismo maçônico que os fundadores traziam era algo completamente novo e ao mesmo tempo que assustava, atraia por dar o sentido de se fazer parte de algo maior e ancestral, como é a busca pela liberdade.
Seguindo essa corrente, os fundadores optaram por reunir os membros do katipunan, em suas pirâmides, em certas grupos chamados lodges, que variavam de acordo com o seu número de integrantes. Essas eram submetidas ao Sangguniang Balangay, que era o conselho da província, que por sua vez se submetia ao Kataastaasang Sangunian, que era o Supremo Conselho. Essa estrutura não apenas aproxima o katipunan da maçonaria, como mostra uma outra semelhança com os carbonari.
Sobre a organização carbonária Signier e Thomazo[2] escrevem que: “Os adeptos realizavam seus encontros em videte (vendas, ou lojas). A fim de limitar os ricso de infiltração policial, essa vendite não tinha nenhuma relação entre elas … As vendite reuniam uma vintena de iniciados que se atribuíam nomes peculiares como Libertadores do país, Liberdade rústica, Amigosos de Tarquínio ou ainda Luz da Noite. Fortemente militarizados, os iniciados deviam dispor em qualquer ocasião de uma arma marcada com o emblema da sociedade, uma cabeça de morto. Além disso, deviam submeter-se a um código moral estrito que reprimia a bebida, o adultério e a blasfêmia. As vendite de uma mesma província eram dirigidas por uma alta vendita., estando cada uma delas sob o controle de um diretório supremo da alta venda.”
O recrutamento de novos membros seguindo a hierarquia maçônica, com esses atravessando um processo onde iniciavam como aprendizes, se tornavam companheiros até por fim chegarem ao grau de mestre, ou na linguagem do grupo, Katipon(associado), Kawal (soldado) e Bayani (patriota).
A identificação dos membros se dava atrás das cores de sua máscara e de sua palavra-chave. Os katipons usavam o capuz preto e sua palavra passe era anak ng bayan (filhos do povo). Os kawals usavam a cor verde e sua palavra passe era gom-bur-za (em homenagens os padres que foram executados). Por fim, os bayanis usavam a cor vermelha e sua palavra passe era rizal.
Seguindo o modelo maçônico filipino, o katipunan aceitou a iniciação de mulheres, atraindo muitas para as suas fileiras, de maneira que em julho de 1893 acabou por ser fundada a loja Le Semilla, exclusivamente feminina.
Sua atuação foi mais popular nos subúrbios de Manila e nas províncias centrais de Luzon, onde pequenas atuações e ataques ao governo eram planejados e executados por seus membros, em conjunto com outras ações, de cunho ideológico, que visavam desestabilizar a tênue paz colonial.
Em 1894 o katipunan tomou posse de uma gráfica, graças a ajuda dos patriotas Francisco del Castillo e Candido Iban de Visaya. De posse dessa valiosa e poderosa ferramenta, eles puderam imprimir boletos e informativos dos ideais da sociedade, resultando em janeiro de 1896 em um exemplar único do jornal Kalayaan, que visava divulgar entre a população o texto Ang Dapat Mabatid ng mga Tagalog, ou O Quê Todos Os Filipinos Deveriam Saber, onde questões delicadas para a coroa eram levantadas ante ao grande público.
O plano mais audacioso esboçado pelo katipunan do qual se tem notícia, foi uma negociação entre alguns de seus membros com o imperador japonês. O objetivo era encontrar um aliado na guerra contra a Espanha pela independência. Arriscado, esse plano nunca saiu do papel.
Conforme a sociedade crescia, os mecanismos criados para garantir a segurança e o anonimato de seus membros se afrouxavam. Assim, em 1896 um homem chamado Teodoro Patiño alertou ao governo que sua irmã Honoria estava envolvida em atividades secretas contra a coroa. A notícia rapidamente se espalhou, sendo inclusive publicada no jornal Diario de Manila, de modo que rapidamente o governo do Vice-Reino iniciou uma grande operação, para trazer a tona a conspiração e seus membros.
Com seu segredo profanado, os membros do katipunan ingressaram no combate declarado a coroa. Sua primeira ação ocorreu no dia 23 de agosto de 1896, com Bonifácio e seus companheiros tomando o controle de diversas províncias de Luzon, e declarando no dia seguinte um governo insurgente.
Foi nessa época que Bonifácio entrou em contato com Rizal (ainda exilado), buscando seu apoio na Revolução. De maneira inesperada, Rizal recusou, dizendo que a sociedade ainda não se encontrava para uma revolução e que o derramamento de sangue esta causaria seria em vão. Foi nesse momento, que Rizal optou por se voluntariar como médico no exército espanhol – rumando para servir durante as batalhas contra a guerra pró-independência que tomavam conta de Cuba.
Em agosto daquele ano, quando o katipunan foi descoberto pelas autoridades, Rizal temeu ser confundido com um de seus líderes, optando assim por fugir para a Espanha. Preso por viajar clandestinamente, ele acabou sendo enviado de volta para Manila, onde acabou executado no dia 22 de dezembro.
Dessa maneira, no decorrer de 1896, diversos ataques foram direcionados pelos katipuneros feitos contra alvos vitais do governo como cilos, armazéns de armas e fábricas de pólvora. Não demorou muito para que a coroa respondesse aos atentados, atacando diretamente os líderes do movimento, o que de nada adiantou, pois o modelo de células fez com que os planos do katipunan continuassem a se desenrolar mesmo com a morte de seus líderes.
Sendo muitos desses líderes maçons, a Espanha decretou naquele mesmo ano, todas as atividades maçônica como ilegais, de modo que muitos irmãos acabaram presos e torturados. Em cavite, o governo ordenou a execução pública de 13 maçons, como aviso a todos aqueles que ousassem se levantar contra o governo.
Os 13, que ficaram conhecidos como os 13 mártires, se chamavam: Máximo Inocencio, Máximo Gregorio, Severino Lapidario, Luis Aguado, Alfonso de Ocampo, Victoriano Luciano, Feliciano Cabuco, Hugo Perez, José Lallana. Eugenio Cabezas, Francisco Osorio, Agapito Conchu e Antonio de San Agustín.
[1] RICHARDSON, Jim. Notes on the Katipunan in Manila. http://goo.gl/hFvJI
[2] SIGNIER, Jean-François. Sociedades Secretas. São Paulo: Larousse, 2008
Capitulo 10: Simbologia
Escrito por Herbert Edwing Duncan, o livro Hi Dad! [1] Conta a história de Frank S. Land e da Ordem DeMolay. Para quem não conhece a Ordem DeMolay, é uma fraternidade para jovens meninos, com idade entre 12 e 21 anos, que é apoiada pela Maçonaria. Logo no início do quarto capítulo desse livro, o autor menciona um episódio em que Frank Land foi entrevistado em uma rádio americana sobre qual era a grande diferença entre a Ordem DeMolay e outros grupos juvenis. Sua resposta foi: “Ela tem um ritual”.
Uma definição sobre rito, ou ritual, nos é dada pelo professor José Croatto[2]: “Rito é uma prática periódica, de caráter social, submetida a regras precisas”.
O que isso significa?
O ritual é um drama encenado. Vulgarmente falando, uma peça, com personagens, falas e ações pré-estabelecidas. O ritual é dramático. O que diferencia porém o ritual de uma simples peça de teatro é que seu conteúdo não é humano não é cotidiano nem pueril. O ritual trás em seu interior uma alegoria e uma mensagem dos deuses. Quando se participa de um ritual, o participando transcende sua mera condição humana e passa a vivenciar uma experiência superior, seja ela de origem divina ou mesmo moral.
A alquimia encontrava sua base em um velho escrito hermético chamado A Tábua Esmeralda, A Tque dizia: “Verdadeiro, sem falsidade, certo e mais do que real, aquilo que está embaixo é como aquilo que está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo para cumprir as maravilhosas de uma coisa. Assim como todas as coisas são criadas de uma coisa, pela vontade e comando do único que a criou, assim todas as coisas são nascidas desta única coisa por prescrição ou união”. [3]
Acima como embaixo, e embaixo como em cima. Do microcosmos ao macrocosmos e vice versa. Existem dezenas de maneiras de se reescrever a fórmula da Tábua Esmeralda. De maneira simples e explicativa, ela fala que há uma correspondência entre uma entidade maior, por exemplo o universo, e uma outra menor, por exemplo o homem. Assim, quando um se modifica, o outro também o faz em solidariedade.
Em magia, é muito comum a aplicação de tal princípio. Quando o magista faz seus encantamentos, parte da sua intenção é alterar a si, de modo que possa alterar o seu alvo. Da mesma maneira, uma das funções do ritual é servir como essa ponte, entre duas entidades que sirvam para unir e modificar ambas.
Tomando o exemplo da ordem juvenil que mencionei: “o objetivo de seu ritual é unir os jovens que dela participam a elevados códigos morais e éticos, permitindo a modificação gradual dos primeiros, de modo que estes se tornem pessoas melhores, filhos melhores e homens melhores.”
O ritual é uma vivencia, assim, uma outra questão que é intimamente relacionada com o ritual é o símbolo. Símbolo é um objeto, um desenho ou um sinal, que serve para relacionar a uma ideia ou a um outro objeto.
Em nosso dia a dia somos cercados e bombardeados por símbolos em todos os cantos. Seja a caveira, que nos indica a tomar cuidado com algo perigoso, seja o coração que significa amor ou o sinal vermelho que nos diz que temos de parar. Longe de ser algo sagrado ou litúrgico, o símbolo é uma coisa natural e rotineira para o ser humano, pois serve para se ligar uma imagem simples a uma ideia maior. Assim, o ritual, longe de algo sagrado, serve como um meio que permite ao ser humano vivenciar o símbolo.
Hoje em dia é comum o uso do termo “efeito manada” dentro da psicologia. Esse termo, tomado emprestado de econômicos, serve para descrever certos estados em que o superego de um determinado indivíduo é diluído pelo grupo que o cerca, levando-o a tomar certas ações e atitudes que sozinho não faria. Como explica o médico Marcos Ferreira “Para que o efeito manada funcione, precisa haver outros ingredientes atuando simultaneamente. O anonimato é um deles”.[4]
Normalmente o termo “efeito manada” é utilizado em um contexto pejorativo, como por exemplo, para descrever o comportamento de certos indivíduos “pacíficos” que são capazes de comer atos de barbárie quando imersos em uma torcida organizada de futebol após a derrota de seu time. Ainda assim o efeito pretendido pelo anonimato da sociedade carrega em si essa mesma função.
Nesse caso, seria a existência da sociedade secreta um problema para a sociedade civil? Seria a mesma uma mera manipuladora de mentes, forçando certos indivíduos a práticas degeneradoras, inconsequentes e impensadas? Não, e nisso consiste uma das funções principais dos símbolos e do ritual.
Voltando aos pais da psicologia, Freud já postulava que os símbolos são produtos do inconsciente. Jung foi além, colocando os símbolos em um nível abaixo, que chamou de inconsciente coletivo, onde o símbolo assume o papel não pessoal. Assim, precisamos reforçar a definição que usamos de símbolo, tomando emprestado um trecho que O'Connell e Airey escreveram em seu livro[5]:
“Os símbolos, por outro lado, sempre representavam mais do que seu significado óbvio e imediato, buscando algo ainda não conhecido. Ele [Jung] achava que ambos eram produzidos espontaneamente pelo inconsciente e não que pudesse ser criado com intenção consciente. Acreditava que os símbolos ocorriam não somente em sonhos, mas em todos os tipos de manifestações psíquicas, dizendo que pensamentos e sentimentos, atitudes e situações podem todos ser simbólicos”.
Os símbolos dos quais a sociedade secreta se utiliza, direcionam o indivíduos não para a anarquia, mas para um fim específico. No caso do katipunan, esse fim ou objetivo era a libertação das filipinas e a criação do sentimento de união nacional – como Bonifácio bem registrou em diversos momentos de seu decálogo.
Se o símbolo denuncia o fim, o ritual é o caminho. Mais uma vez citando O'Connell e Airey [5]:
“Ultrapassar limites implica ser confrontado por novos desafios, que vão além da existência diária. Este é o propósito da iniciação em muitas culturas, através do qual os indivíduos ou grupos devem expandir suas identidades”.
O estudioso Joseph Campbell elaborou no livro O Herói de Mil faces, lançado em 1949, o conceito do monomito, também conhecido como a jornada do herói, que nada mais é que uma definição de uma estrutura comum a todos os mitos e histórias, ou como explica Albert Paul Dahoui:
“... em todas as histórias, existe um herói em que a narrativa gira em torno de suas peripécias. Nem sempre o herói é um ser humano, podendo ser um grupo de pessoas, um animal ou uma figura mitológica.”
Quem é esse herói? Como o próprio Campbell explica[6]:
“O herói é o homem da submissão auto conquistada ... O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos.”
Dentro do katipunan veremos que toda a escolha da simbologia, aliada a vivência proporcionada pelos rituais, visam a fazer com que o ser humano comum que adentre a ordem transcenda o papel de um mero cidadão comum, e se ele a categoria de um guerreiro defensor de sua terra. Uma mitologia é criada e como o próprio Campbell descreve:
“A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás.”
[1] Duncan, Herbert Ewing. Hi Dad!Missouri: Supremo Conselho Internacional da Ordem DeMolay e Supremo Conselho da Ordem DeMolay para a República Federativa do Brasil.
[2] Croatto, José Saverino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas.
[3] Parucker, Charles Vega. Hermes Trismegisto. Curitiba: AMORC, 2007.
[4] Ferreira, Marcos. Efeito Manada. http://goo.gl/n6qeN
[5] O'Connell, Mark e Airey, Raje. O Grande Livro dos Signos & Símbolos. São Paulo: escala, 2010.
[6] Dahoui, Albert Paul. A Jornada do Herói. http://goo.gl/0UBvL
[7] Campbell, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 1997.
Capitulo 11: Símbolos
Como já comentado, o nome completo do katipunan era Kataastaasan, Kagalanggalangang, Katipunan ng mga Anak ng Bayan, ou em português Suprema e Venerável Sociedade dos filhos da nação. Para designar a sociedade, um dos primeiros símbolos – e mais comumente usados – era o acrônimo K.K.K.
Apenas com o desmascarar da sociedade em 1896, que as suas bandeiras p assaram a ser conhecidas do governo e da população em geral. A primeira a ser utilizada na primeira batalha pública do Katipunan, ocorrida em San Juan del Monte em agosto de 1896. Esse evento, que também ficou conhecido como a batalha Pinaglabanan, tendo sido liderada pelo próprio Bonifácio.
A bandeira utilizada pelos katipuneros era vermelha e trazia um sol ao centro com o acrônimo da ordem logo abaixo. Essa bandeira foi confeccionada pela esposa de Bonifácio, Gregória de Jesus, junto com Benita Rodriguez, para que servisse como estandarte pessoal de Bonifácio. Outras bandeiras surgiriam a partir dela, mantendo como padrão o uso da cor vermelha.
Vermelho, cor da guerra e da bravura, era largamente utilizada por filipinos, fossem cristãos ou mouros, em épocas de guerra. Fora isso, não se pode negar a influência da leitura de "Os Miseráveis", de Victor Hugo, que influenciou Bonifácio com sua descrição das bandeiras vermelhas flamulantes da comuna de Paris, em sua luta contra a opressão.
Uma outra variação encontrada posteriormente em Cavite trazia, ao invés do acrônimo K.K.K, a letra Ka, do alfabeto tagalog ao centro do Sol. Este Ka, também era a primeira letra da palavra Kalayaan, que significa liberdade.
Outra variação foi utilizada em Malibai, onde o Sol deu lugar ao olho-que-tudo-vê, símbolo maçônico de um triângulo com um olho ao centro. De fundo vermelho, essa bandeira trazia o acrônimo na sua borda inferior, seguido pelo nome do local. Uma variação em Bicol, trazia a letra K no lugar do olho.
Em 1897 e 1898, novas variações nasceram, algumas com um formato semelhante ao da bandeira atual das filipinas, como a do general Gregorio Del Pilar, que usava um triângulo deitado de fundo azul a esquerda e duas barras horizontais paralelas a direita, sendo até então nas cores preta e vermelha.
Outro rito de grande valor simbólico presente no katipunan era a escolha de um novo nome para o membro. Em finais do século XIX, o rito Adonhiramita era um dos mais práticos na maçonaria ibérica e era seu costume que, ao ser iniciado o maçom assumisse um novo nome – este deveria representar as aspirações do maçom, que paltariam suas ações na sociedade. Tal ritual acabou incluso no katipunan, sem qualquer alteração em seu sentido original, acrescentando apenas a questão da privacidade para o caso de extravio de algum documento.
Capitulo 12: Ritualística
Apesar de ter tido uma existência breve, se comparada a outras sociedades, a natureza do katipunan não permitiu o engessamento e a conservação dos rituais utilizados em suas cerimônias. Sabe-se, graças a poucos papéis tomados pelo governo espanhol durante a luta, que não bastasse a sua organização, a fluência dos encontros também seguia a estrutura maçônica.
A seguir estão descritos três dos procedimentos ritualísticos que chegaram aos nossos dias: o primeiro para se realizar a abertura da reunião, o segundo para se iniciar um novo membro do katipunan e a terceira para se promover este ao grau máximo, de patriota.
Os três rituais buscam trazer à tona alguns sentimentos comuns, direcionando os participantes para o objetivo e demandas do movimento. O segredo necessário para a sobrevivência e sucesso da empreitada era tratada como ouro e reverenciada pelos katipuneros, assim como as frases utilizadas enaltecer o vindouro estado de liberdade que o movimento traria por sobre as ilhas.
Os rituais apresentados a seguir, constituem uma meio termo entre as diversas versões que chegaram aos nossos dias, trazendo o seu sentido principal.
12.1: Abertura da reunião
Durante as reuniões alguns membros do katipunan assumiam personagens específicos dentro do ritual que era realizado. Um dos membros do grupo assumia o papel do sentinela, que tinha por obrigação ficar à porta da loja, guardando o local da reunião e solicitando os sinais secretos a todos que tentassem adentrar suas portas. Aqueles que desconhecessem tais sinais eram sumariamente expulsos. Ao mesmo tempo, um outro membro do grupo, chamado fiscal, deveria se encarregar de fiscalizar os arredores do local, procurando por possíveis olheiros e espiões.
Com o ambiente verificado e todos os membros presentes dentro do local, o membro que que estivesse no comando da reunião, chamado de presidente, dava inicío a sessão com a seguinte fala: Irmão sentinela, você verificou por meio de sinais secretos se todos os presentes são nosso irmãos?
O sentinela então respondia ao presidente: Sim irmão presidente, todos os aqui presentes podem ser chamados de irmãos.
Todos os membros do Katipnuam se encontravam unidos por um único fim e objetivo, assim, era comum o tratamento por irmão e irmã. Após a confirmação do sentinela, o presidente então se dirigia ao fiscal dizendo: Irmão fiscal, você tomou as devidas providencias, necessárias para se manter a segurança dessa respeitável lodge?
O termo lodge era utilizado para designar o local das reuniões dos katipuneros. O termo é emprestado da maçonaria, que tinha por significado alojamento, local de descanso do trabalho, embora em português tenha se optado pelo termo Loja. O fiscal então respondia: Sim, irmão presidente, os irmãos e a lodge se encontram seguros.
Confirmada a segurança do local da reunião, o presidente então dizia: Tudo o que havia de ser feito para garantir nossa paz e segurança foi feito meus irmão. Assim faremos a abertura de nossa respeitável lodge foi feito. Fiquem todos de pé e em ordem, meus queridos Irmãos.
Todos os presentes se levantavam e faziam o sinal da ordem, que era respondido pelo presidente com os dizeres: Em nome da Nação, a qual dedicamos integralmente os nossos maiores esforços, eu declaro aberta essa respeitável lodge dos filhos do povo. Sentemos meus irmãos, e comecemos as discussões sobre a expansão de nossa nobre causa. Irmão Secretário, por favor leia para nós a ata de nossa reunião anterior.
Registros e documentos eram um mal necessário ao katipunan. Ao mesmo tempo em que estes poderiam servir para incriminar os membros, caso caíssem nas mãos do governo, se faziam necessários para que a organização mantivesse o controle e continuidade de suas obras. Assim, ao início de cada seção o secretário fazia a leitura das atas da reunião anterior e, ao final, o presidente questionava os demais presentes, perguntando se havia algo que precisasse ser incluído ou excluído da mesma.
Iniciada a reunião, e repassados os feitos da última sessão, o presidente iniciava os debates planejados para aquele dia, com o debate ocorrendo entre os presentes, e as deliberações sendo anotadas pelo secretário. Ao final, o tesoureiro do grupo circulava entre os presentes com uma bolsa, para coletar valores que deveriam vir a ser utilizados para financiar as ações do grupo. No final, esse valor era contado pelo tesoureiro e o valor informado a todos os presentes, assim como informava a todos da vida financeira do grupo, questionando os gastos que tiveram e o fundo que havia em caixa.
Assuntos tratados, receita declarada, o presidente então solicitava a todos os presentes que mantivessem a reunião em sigilo e a lodge se fechava, com os presentes saindo do local de maneira discreta e voltando para os seus afazeres cotidianos.
12.2: Iniciação de um novo membro
Dentre os rituais, nenhum era mais importante que o de iniciação de um novo membro. O maior receio dentre os pais do kaitpunam era o de que o mesmo se convertesse em um mero movimento onde os membros não se comprometessem a fundo com a ideologia proposta. Assim, a iniciação buscava transmitir ao postulante o sentimento de nacionalismo e unidade que faltava a população, buscando apresentar a causa da liberdade como uma benesse coletiva e não apenas pessoal.
O processo de iniciação começava com a abertura ritualística da loja, como já foi mostrada. Tendo certeza da segurança do local, o presidente então se dirigia ao secretário e dizia: Irmão Secretário, queira anunciar para todos o nome daquele que deseja se juntar a nossa ordem.
O secretário realizava a leitura com os nomes dos candidatos. Ao fim, o presidente então se dirigia aos demais presentes e dizia: “Meus irmãos, vocês por acaso sabem algo sobre as vidas dessas pessoas que desejam se juntar a nós?”
Cada um dos presentes tinha então a oportunidade de falar algo e ou de questionar algo sobre a indicação do possível candidato. Feitas as deliberações, o presidente então respondia: Temos agora uma ideia melhor formada sobre o tipo de pessoa e que vida leva, esse que pensa em se juntar a nossa luta. Ainda assim, devemos agora submetê-lo a árduas, para que possa por a prova o seu caráter e sua decisão, antes de ingressar de fato no katipunan.
Enquanto se desenrolava a apuração dos candidatos na loja, estes ficavam em uma câmara separada, completamente vendados. Um dos membros do katipunan, chamado de terrível, afrontava então os candidatos. Eram feitas as seguintes perguntas:
Quem é você?
O que você busca aqui?
Você já encontrou o que procurava?
Quem te contou sobre este local?
O que ele revelou a você, para que você tenha vindo até aqui com esse propósito?
Todas as perguntas eram feitas com o candidato ainda vendado e com uma adaga apontada para o seu pescoço ou sua barriga. Por fim, uma última pergunta: “Você sabe que ao se juntar ao katipunan você estará no limiar dos perigos mais terríveis da vida, como o de ser exilado em lugares distantes e separado dos seus entes mais queridos? Você não teme isso? Ou algo pior, como estar correndo para a morte certa?”
O candidato, em posição de clara desvantagem, tinha de responder a essas perguntas sem receios e com a maior franqueza possível. Caso o terrível aceitasse as respostas, ele dizia: “Tudo bem meu amigo, se você ainda insiste em prosseguir no ingresso ao katipunan, venham comigo.”
Uma vez que o irmão Terrível tenha terminado o seu questionário com os candidatos, ele então o encaminhava para a porta da loja, e o instruía para que batesse na porta do local onde a loja estava reunida. Haviam maneiras especiais de bater a porta, que identificavam aos que estavam na reunião que aquele que estava chegando era um membro. O candidato porém deveria bater de uma maneira irregular. O presidente, ciente de que algo estava errado, gritava para os demais presentes: Irmão Sentinela, verifique quem bate a nossa porta. Irmãos, preparem suas armas, pois não sabemos quem vem e quais são suas intenções.
Todos os presentes então se levantavam, sacando suas armas. O sentinela então abria uma fresta na porta, com sua arma na mão, e gritava: “Quem está ai?”
O terrível tomava a frente do candidato e dizia: “Sou eu, Irmão Sentinela! Trago uma pessoa, recém saídas das trevas da escravidão, que anseia por ser livre. Tendo passado por muitos obstáculos e perigos, ela agora se encontra diante dos nossos portões, clamando por Liberdade!”
O sentinela ordenava então ao terrível que aguardasse. Voltando então a assembleia, relatava o que tinha acabado de escutar. O presidente então respondia: “Se é assim, permita a entrada do Irmão Terrível, mas antes, verifique seus sinais para que tenhamos certeza de que ele é verdadeiramente um irmão, antes de adentrar nesse recinto com o estranho que o acompanha. Irmão Fiscal, coloque seu braço ao redor dos ombros do Irmão Sentinela e fiquem juntos, para que caso o Irmão Terrível não ser reconhecido como um irmão – nesse caso devendo ele e o outro serem eliminados o mais rapidamente possível, de maneira que a vergonha não tome nossa alma e nossa tranquilidade não seja destruída.”
Confirmada a identidade do terrível, ambos eram levados ao presidente, que dizia: “Irmão Secretário, dispa este que aqui se encontra, e tome nota de seu nome, sobrenome e de quaisquer marcas e traços que por ventura tenham em seus corpos.”
O secretário conduzia o candidato para um canto, cumprindo as funções que lhe haviam sido ordenadas. No século XIX, tomar nota apenas do nome era insuficiente, assim, a identificação de marcas e de características pessoais facilitaria um reconhecimento futuro deste por parte dos demais membros. Finalizadas as anotações, o secretário retornava junto do presidente dizendo: “Irmão Presidente, cumpri com a tarefa que me foi solicitada. Eis aqui a lista com o nome, sobrenome e marcas corporais do candidato.”
De posse da lista, o Presidente apresentava ao candidato uma nova série de perguntas para aumentar a credibilidade dos demais no futuro irmão. Este, a todo momento deveria permanecer vendado, enquanto os demais ficavam com armas em punho, preparados para qualquer reação inesperada. As perguntas apresentadas eram:
Você é um compatriota?
De qual cidade ou província você vem?
Quais são os nomes dos seus pais?
Eles ainda vivem?
Você tem irmãos? Quais são seus nomes?
Qual é o seu estado civil, e quantos anos você tem?
Você sabe ler e escrever?
Qual é o seu meio de subsistência?
Qual é a sua convicção religiosa?
Você não é um membro de alguma outra organização, como a Maçonaria?
Qual é o seu propósito em vir aqui?
Adentrar os portões do katipunan acarreta em se submeter a uma vida de dificuldades e adversidades pelo caminho. Estaria você, meu caro compatriota, preparado para superar essas dificuldades?
Caso as respostas fossem sinceras e satisfatórias, o presidente então dizia: “Se é assim, você está pronto. Irmão Terrível, faça o seu dever em relação a esse compatriota que deseja participar de nossa ordem!”
Dispensado pelo Presidente, o Terrível tinha de levar o candidato para uma sala, fora do local da reunião do templo. O candidato era então deixado sozinho na sala, com a instrução de retirar a venda após escutar 4 pancadas na porta.
Ao retirar a venda, o candidato se via em uma saleta, envolta em pano preto e iluminada por algumas velas. Alguns quadros decoravam essa sala, sendo o primeiro mostrando uma árvore carregada de frutos. O segundo, com diversos espanhóis comendo os frutos e destruindo a árvore. O terceiro, mostrando um casal lutando contra alguns frades que tentavam arrancar seu filho a força. O quarto mostrava um índio a moda espanhola com um alvo em sua testa. O quinto, mostrava um moribundo.
Além dos quadros, a sala também contava com uma pequena mesa, com uma caneta, tinta e uma folha de papel, com os seguintes dizeres:
Como era a nossa terra, enquanto os espanhóis ainda não estavam aqui?
Como as pessoas se tornam subordinadas, quando elas ainda não eram batizados naquela época?
Qual é a condição destas ilhas filipinas agora, sob o domínio dos espanhóis?
Como devem os nativos dessas ilhas se portar ante seus compatriotas e ante aos espanhóis?
Caso os espanhóis abandonem nossas terras, e nós passemos a nos governar, como seria? Nós nos corromperíamos ao governar sua própria terra?
Caso fosse alfabetizado, o candidato deveria escrever suas respostas. Caso não fosse, as mesmas seriam faladas pelo terrível, que a transcreveria. Findo o exame, o candidato deveria recolocar sua venda, para ser reconduzido pelo terrível até o local da reunião, onde seria inquerido pelo fiscal, com as seguintes perguntas:
Você é um homem ou um fraco?
Suas palavras e ações são compatíveis com as que se espera de um homem?
Caso assim seja, você se envergonhará caso falhe em qualquer uma das suas promessas?
Findo esse último questionário, o Fiscal lia as respostas feitas pelo candidato. Terminada a leitura, o Presidente se dirigia ao Terrível, dizendo: “Meu irmão, durante o trajeto ao qual você o acompanhou, em algum momento você sentiu a ansiedade ou o temor tomar conta deste que anseia em nos chamar de irmão?”
Após escutar a opinião do Terrível, o Presidente dizia: “Nesse caso, há apenas mais um único teste ao qual o candidato deve passar. Assim, compatriota, escutai atentamente ao que eu tenho a lhe dizer! No Katipunan é estritamente proibido a qualquer membro revelar seus segredos a qualquer estranho. Passar informações a qualquer um de fora da nossa sociedade é um ato de traição, que deve ser punido com a maior severidade. Caso um membro seja detido por falhar com sua palavra, você promete matá-lo?”
Caso o candidato se comprometa, o Presidente então gritava: “Estando você de acordo com a pena capital aplicada aos traidores de nossa causa, nada mais justo do que por a sua decisão a prova aplicando esta pena em um cão que ousou nos trair!”
Um traidor, ou um irmão disfarçado como tal, era levado até a assembleia, onde o candidato deveria dar provas de executar a pena com uma arma preparada para tal. Feito isso, era ele então recebido como mais um irmão do katipunan, após a leitura do seguinte juramento:
Eu, juro em nome do meu Deus e do meu país, defender a causa do katipunan com toda a minha coragem, e a manter em segredo tudo o que eu aqui ver e escutar, e a seguir cegamente todas as ordens, e a suportar, sem exitar, todos os perigos e exigência de minha missão. Juro também respeitar meus irmãos e meus líderes, e a não vacilar no cumprimento de minhas missões. Para tal, assino com meu próprio sangue este pacto!
12.3: Elevação de soldado à patriota
Sendo uma sociedade hierarquizada e em plena expansão, o katipunan oferecia aos seus membros a oportunidade de ascender em sua escala de poder, mediante merecimento e trabalho. Tal promoção, porém, não ocorria de forma automática.
Simples, a passagem de associado a soldado ocorria sem grandes delongas. A passagem porém, de soldado a patriota, necessitava de um fundo simbólico muito maior, devido as implicações que o katipuneiro passaria a ter dentro das necessidades do grupo. Suas responsabilidades seriam maiores e qualquer falha ou vacilo seria muito mais prejudicial para os planos.
Em uma saleta escura, como a utilizada na cerimônia de iniciação, o soldado era deixado sozinho para meditar sobre seu futuro. Enquanto isso, em plena sessão, o irmão Terrível se levantava e dizia: “Estimado Presidente, amados irmãos, o soldado ... se encontra agora na sala das reflexões. Ele vem até nós na ambição de se elevar ao distinto grau de patriota. Para esse propósito, eu imploro a vocês, meus amados irmãos, que considerem calmamente as ações de nosso irmão, e vejam em seus corações se ele possui as qualidades das quais um patriota necessita. Em alguns momentos eu o trarei até aqui, onde o questionaremos. Prestem atenção meus irmãos! Suas respostas as nossas perguntas, sua reação as questões que iremos lhe perguntar, e os demais sinais que ele por ventura venha a demonstrar, responderão a nossa pergunta. Entretanto, seja lá o que observemos, nada é mais importante do que lembrar da necessidade das responsabilidades que trazemos em nossas mãos, de divulgar nossos mais estimados segredos a quem quer que seja, sob pena de falharmos! Tenham certeza, meus irmãos, que falharemos caso não tenhamos certeza das virtudes desse soldado como honra, bravura, lealdade e diligência! Precisamos, de igual maneira, avaliar se ele possui as características que são necessárias para se tornar um líder das batalhas que virão!”
Após escutar as considerações do Terrível, o Presidente fazia um pedido para que o Soldado fosse levado até sua presença. Quando este se apresentava, o presidente então dizia: “Meu amado irmão, você se encontra agora em nossa respeitável loja, onde se encontram reunidos diversos patriotas de nosso conselho popular. Em memória a um inesquecível dia de dor, é preciso que você visualize a covarde execução de B, G e Z, mártires da nossa amada terra natal. Se é o seu desejo adentrar a nossa respeitável loja, é preciso que você aplique as qualidades que aprendeu enquanto soldado: diligência, nobreza e valor. Hoje portanto, nós que estamos reunidos aqui nessa respeitável loja pediremos para que você manifeste, com honestidade e pureza no coração, um caráter fervoroso que não possa vir a ser silenciado. Me diga meu amado irmão, você refletiu profundamente sobre a gravidade desse assunto? Quais são seus pensamentos sobre esta nova etapa tão perigosa que você está prestes a vivenciar?”
O presidente então aguardava a resposta do soldado para então continuar: “O medo é a sua mente lhe pregando uma peça. Esta determinando em prosseguir neste caminho?”
Após o Soldado responder, o presidente prosseguia: “Presidente: Será você corajoso o suficiente para suportar as terríveis provas ao qual será submetido para prosseguir em seu caminho?”
Com essa última resposta, o presidente então continuava: “Se esse é seu verdadeiro desejo, por favor escute: A terra onde nascemos está chorando amargamente, ainda sofrendo sob a tirania cruel dos freis. Ela implora aos seus filhos para que a ajude, de modo a forjar uma unidade que seja firme e forte o bastante para causar a justa e adequada vingança contra o temido inimigo. Meu amado irmão, um grande erro foi cometido contra três leais patriotas, que foram de grande valor para a nossa sociedade. Uma mão audaciosa e pérfida lhes privou da vida.”
“Os decentes e infelizes B., G. e Z., juntamente com outros compatriotas de bem, estavam indignados com as inumeráveis mortes e furtos que nossa terra e nosso povo estavam sofrendo. Eles ficaram horrorizados com a arrogância e desprezo com que os inimigos mostravam para com a verdade e a justiça e para com o nosso infeliz e fraco povo. Sem temer os perigos que lhes aguardavam, eles juntos proclamaram ao povo os mais elevados ideais do patriotismo. Sem temer represarias, eles publicaram na Espanha a revista "Eco Filipino" , onde se dirigiam aos bravos e aos francos. Aquele foi um tiro do fogo da verdade contra a mentira colonial, trazendo a luz da verdadeira razão contra a opressão flagrante sobre os fracos. Era uma proclamação de guerra contra a repugnante exploração dos ignorantes e contra todos os mais diversos males que eram infligidos contra nossa terra natal.”
“Ainda assim, de início eles tentaram, pediram, clamaram ao Governo espanhol para que as leis fossem criadas, não para oprimir, mas para melhorar as condições de vida do nosso povo. Os padres, porém, tomaram ciência das reivindicações, e sem pudor preparam uma ardilosa trama. Para esse fim eles incitaram a guarnição que se encontrava em Cavite a organizar um levante em seu próprio nome e em nome de muitos outros cidadãos de Manila e de outras cidades. O falso levante foi suprimido quase tão logo eclodiu e esses bravos foram acusados de serem seus mentores. Assim, utilizando tal pretexto, o governo real não tardou em encaminhar nossos bravos compatriotas em direção ao cadafalso, mas não sem antes lhes aplicar outras crueldades. Eles enfrentaram muita dor e sofrimento, para os quais eles precisaram manter seus corações e mentes firmes na coragem. As víboras que permeiam os mosteiros passaram então a iniciar uma série de incitações e agitações entre o povo. Assim, vieram as prisões e deportações para terras estrangeiras de outros audazes da justiça. Passamos então a assistir um verdadeiro circo de horror e sofrimento em nosso meio, com famílias afastadas pelas distâncias e pela morte desonrada. Aqueles que separaram uma mãe de seus filhos estão cometendo uma blasfêmia contra Deus, porque uma mãe ama seus filhos, que são a continuação de sua própria respiração acima de tudo.
“Pobres infelizes, presos longe de sua terra natal e de seus entes queridos. Deportados, lançados para fora de maneira impiedosa. Fora os derramamentos de sangue, sangue inocente; um brutal e amargo fluxo de lágrimas correu, intercalado com o crepitar maldito de armas dos executores e os gemidos dos feridos. Estes são os ruídos, este é o rugido, que abalam a calma tranquila da sua sepultura. Esta traição foi uma revelação amarga mas ao menos serviu para que se rasgasse o véu que cobria os olhos do nosso povo, pois não demorou até que a terrível corrupção se mostrasse visível para todos. Assim, seus mentores mostraram sua verdadeira face: vermes, vermes peçonhentos que envenenaram o povo filipino.”
Diante do prolongado discurso do presidente, os demais presentes na assembleia gritavam em uníssono: “Malditos sejam os nossos carrascos! Nós os amaldiçoamos!”
O Presidente então se virava mais uma vez para o soldado e lhe dizia: “Você seria capaz de sofrer como eles sofreram, dando a vida por amor ao seu país? Você seguiria os passos daqueles três mártires. Você estaria preparado para isso?”
Após a resposta, o presidente exaltado lhe fazia mais uma pergunta: “O Governo espanhol o acusará de traição contra a nação espanhola pelo simples ato de se juntar a nossa associação. Como você responde a essa acusação? Diga!“
O Soldado então respondia, sendo seguido pelo Secretário que dizia: “A partir das respostas que acabamos de ouvir deste irmão, é claro para todos que ele admite a traição contra a Espanha!”
O Fiscal que até o momento estava calado se levanta e diz: “Em vista do que acaba de ser revelado, eu proclamo que você é culpado de uma grave traição contra o Governo de Espanha! Por tal crime você será executado! Seu sangue servirá para sob qual bandeira se encontra sua lealdade, se a bandeira do katipunan ou a bandeira da Espanha! Irmão Terrível, acompanhe o soldado à Capela para que ele tenha tempo de rezar antes que lhe seja aplicada a pena capital!”
O Soldado aturdido era retirado da sala pelo Terrível e levado para uma sala em anexo, onde a forca o aguardava. Enquanto isso, o Presidente, com tom bravo, gritava aos seus pares: “Meus amados irmãos, um de nossos soldados se encontra em perigo, prestes a ser executado! Vocês, que juraram abrir mão de suas vidas para defenderem uns aos outros, agora, juntem-se a mim e resgatemos o nosso irmão! “
O Soldado desnorteado era posto no cadafalso prestes a ser executado, quando o presidente e os demais invadem a sala e o libertam, para logo depois dizer: “Meus amados irmãos, abracemos ao nosso irmão, que se mostrou um verdadeiro soldado!“
Após o abraço todos se afastam e o Presidente diz: “O que você acabou de vivenciar foi uma experiência que representa a maldição fatídica que assombra qualquer patriota dedicado ao nosso país. Meu amado irmão, todo o sofrimento que você acabou de passar deve impressionar-lhe pela perfídia e indignidade que sofrem nossos infelizes compatriotas. Que a memória desse episódio seja como um vulcão no coração de todos nós, que nos motive para a vingança contra nossos opressores. Espero que esse momento sirva para dar a você um claro entendimento da razão e do amor que merece a nossa terra natal face ao terror e a repressão. No final desta jornada árdua, nem mesmo uma morte violenta, em meio a gritos de desesperos, será o bastante para levar nossos anseios pela liberdade. Assim, tenho certeza que você está esperançoso, assim como nós, pelo dia em que nosso objetivo será alcançado e nossa fraternidade seja mostrada aos nossos inimigos.”
“Você teme que isso possa acontecer a você um dia meu irmão? Em seu sofrimento e na coragem que mostrou durante os ensaios, estamos inclinados a acreditar que você é ousado o suficiente até mesmo para tirar a vida de outro em defesa de nossa ordem. Sendo assim, lhe pedimos um último teste da sua fidelidade, pedindo que você execute, com uma única facada no peito, um miserável traidor, que ousou esquecer nosso objetivo e que traiu nossa sublime ordem. Você será o executor! Está pronto para cumprir com o seu dever, meu amado irmão?”
O presidente então pedia para que o soldado assinasse uma declaração de que a morte que ele causaria a outro não era de natureza pessoal, nem passional, assim como não era encomendada por outrem. O Terrível então conduzia o Soldado até uma sala anexa, onde era simulada a execução. Feito isso o Presidente dizia: “Meu amado irmão, antes de o elevar a condição de patriota, lhe pedimos que repita comigo o seguinte juramento.”
"Eu, [N], reafirmo os juramentos que tomei enquanto companheiro e soldado, perante ao meu país e ao katipunan. Juro ser fiel e diligente, e guardar nossos segredos. Eu juro que eu ainda estou pronto para morrer, lutar, dar tudo, perder tudo, para a libertação de nosso país".
A cerimônia era então encerrada com o presidente dizendo: “Caso você caia na lama da iniquidade e quebre esse juramento, sua vida será para sempre atormentada por dificuldades, medo e sofrimento sem fim. Você não será capaz de desfrutar de sequer um momento de paz e conforto. Todo o seu corpo será afligido pela doença repugnante da lepra, malcheirosa e contagiante. Todos o evitarão, como se estivessem evitando uma besta venenosa e todos serão capazes de ler a palavra "Traidor" em sua testa. Assim, você será para sempre rotulado e desprezado como uma pessoa sem honra.”